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Se Jung tivesse conhecido um Preto-Velho…

Se Jung tivesse dado uma passada num terreiro antes de escrever seus livros, talvez tivesse economizado umas mil páginas e uns bons anos de análise suíça.Não que uma coisa anule a outra, análise e terreiro não jogam em times opostos. Talvez em campeonatos diferentes. Um te coloca pra falar até cansar, o outro te faz ouvir até entender. No fim, os dois estão tentando abrir as mesmas portas: aquelas que escondem nossas dores, traumas e possibilidades.

No divã, você fala com o analista. No terreiro, você fala com o guia. O caminho muda, mas a pergunta é a mesma: “como sobreviver ao caos da vida sem enlouquecer?”



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Jung chamou de “Velho Sábio” aquele arquétipo da orientação, a voz que aparece nos sonhos quando estamos perdidos. A Umbanda tem o Preto-Velho: fala manso, serve café e dá conselho que parece simples, mas, só parece mesmo. A diferença é que o de Jung é metáfora do inconsciente; o nosso carrega cicatrizes históricas da escravidão transformadas em sabedoria. Na prática, ambos cumprem o mesmo papel: guiar quando a gente esquece do caminho.

Herói x Caboclo

O herói junguiano mata dragões. O Caboclo enfrenta a mata, a seca, a fome. Ensina a rezar com folha e a sobreviver com coragem. Enquanto Jung lia sobre mitos medievais, aqui a figura de força se encarnava no indígena que sabia lidar com a terra. Ambos representam coragem, mas o cenário é outro. Herói é símbolo universal; Caboclo é esse símbolo de pé no chão brasileiro.

Criança Divina x Erês

Jung falava da “criança interior” como promessa de renovação. Na Umbanda, isso tem nome: Erê. Pede bala, faz birra, dá bronca e no meio disso, cura. A psicanálise te convida a resgatar tua criança; o terreiro bota a criança na roda, rindo e ensinando. Uma fala ao inconsciente pela palavra, a outra pela experiência.

Trickster x Malandro

O trickster junguiano é o trapaceiro divino: bagunça, engana, revela. Na Umbanda, esse arquétipo chega de terno branco e chapéu panamá: o Malandro. Ele não apronta, ele escancara contradições sociais com humor e ironia. Jung viu Hermes roubando bois. A Umbanda mostra Zé Pelintra rindo na Lapa. A psique adora ensinar na base da piada.

Grande Mãe x Yabás

Para Jung, a Grande Mãe é ambivalente: nutre e devora. Na Umbanda, essa ambivalência aparece nas Yabás: Oxum que acolhe, Iansã que sopra ventania, Iemanjá que embala e afoga. O arquétipo não fica no livro, ele se encarna nas águas, no vento, na maré que muda sem pedir licença.

Inconsciente Coletivo x Plano Espiritual

Jung dizia que carregamos imagens universais num inconsciente coletivo. A Umbanda fala em plano espiritual, onde essas imagens não ficam apenas como símbolos: elas se manifestam em guias que dançam, aconselham, choram e riem.Um chama de psique, outro chama de espírito. A função é a mesma: dar rosto ao invisível pra que a gente consiga dialogar com ele.


Divã e Terreiro: dois jeitos de abrir a mesma porta

Não é sobre escolher entre um e outro. É sobre perceber que ambos falam da mesma necessidade humana: organizar o caos, dar nome ao invisível, encontrar sentido quando a vida pesa.Jung fez isso escrevendo livros densos, mapas do inconsciente.A Umbanda faz isso cantando, dançando e deixando o corpo falar.

E às vezes, o que a análise não alcança, a gira toca. E o que a gira não resolve, o divã segura. Não é disputa, nunca foi uma disputa, é parceria.

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