O Ônibus Errado Que Me Levou ao Lugar Certo
- Crís D'Oroiná

- 21 de jun.
- 2 min de leitura
A verdade é que, naquele dia, eu só queria chegar em casa. Era uma quinta-feira qualquer, dessas que a gente sai do trabalho com a alma amassada igual papel esquecido no fundo da bolsa. Saí da Dom Pedro II num triz de paciência e com os olhos semiabertos. Entrei no ônibus no modo automático. Sentei. E dormi.
Quando acordei, a paisagem era outra. Totalmente outra. Nada de familiar. Avenida Pacheco e Chaves me dava boa tarde — ou boa noite, nem lembro — como se fosse íntima. E eu, uma baiana perdida em São Paulo, a uns três quilômetros da rota certa, me vi ali, cansada, confusa, com mais perguntas do que mapa. Mas, como boa filha de fé, pensei: se aconteceu, é porque tinha que acontecer.
E aconteceu.
Aconteceu que, ao atravessar a rua, vi um tabuleiro de ervas. Daqueles que fazem o peito da gente suspirar com memória. Me lembrei da Bahia, das feiras, das mãos de mulher negra que benzendo também curam, das folhas que falam. Atravessei a rua com saudade nos pés e curiosidade nos olhos. E foi ali que tudo mudou.
Fui recebida com um sorriso e um convite:— Vai ter gira. Quer entrar?
Gira?
A menina kardecista que fui por 12 anos arregalou os olhos. Gira eu só conhecia de nome e, pra ser sincera, achava que era dança. E era... Entrei.
E fui recebida pelo som que ecoa até hoje dentro de mim: os atabaques. Senti o corpo reagir antes da mente entender. O coração bateu no ritmo do couro. As cores, as pessoas, os aromas, tudo parecia um ritual sagrado. E eu, no meio daquilo tudo, me perguntava:— Por que no kardecismo tudo era tão branco, tão calado, tão… triste?
Ali não. Ali tinha vida. Tinha gente preta sorrindo, tinha conversa, tinha Congá (descobri o nome depois) com flores, velas e encantos. Tinha o que eu nunca soube que me faltava.
E quando menos esperei, ouvi passos atrás de mim. Fortes. Rituais. Antigos. Um senhor tocou meus ombros com firmeza e disse com a voz que parecia vir da terra:
— Tava te esperando, fia. Precisa vir dia de desenvolvimento.
E eu nem sabia o que ele queria dizer. Mas entendi tudo.
Entendi que eu tinha chegado. Que o ônibus "errado" era o transporte mais certo da minha vida. Que aquela praça, aquele tabuleiro, aquela casa... eram respostas pra perguntas que eu ainda nem sabia fazer.
Voltei, claro. Voltei pra todas as giras que pude, e continuo voltando. Me desenvolvi, me despi dos silêncios forçados, das ausências de cor, e me vesti de guias, de ervas, de pontos riscados e cantados com alma.
E hoje, sempre que alguém me pergunta como entrei na Umbanda, eu rio e digo:
— Peguei o ônibus errado.
E se a conversa continua, eu pego minha caneca de chá e emendo:— Agora senta, porque a história é longa...



Comentários